terça-feira, 28 de junho de 2011

Amanheceu

Cobertos por algo que tapava o céu, o colchão feito chão gelado, um frio que queima feito brasa. De repente um carinho daqueles feito com a ponta do nariz resfriado, um envolvimento de pernas que de tão enroscadas se faziam mil. O cheiro que se concentrava no ar não era de amor, nem de amizade, nem de certeza. Era um cheiro bom de encontro, que se desfazia na velocidade em que se construía. Como um casaco de lã que nunca cria forma enquanto a agulhas não param de trabalhar. A velocidade do mundo além deles é rápida, parece que crianças correm por um campo extenso, por um campo que faz eco.
Uma porta que nunca se abre, a brasa agora é de prazer. O que queima não é mais o colchão, as crianças fazem silêncio, o campo pega fogo sem fazer fumaça. Só o que se sente é o calor. Algo explode lá fora e algo implode lá dentro. O silêncio agora é eterno. Há uma voz que pede: não se vá. Repete incontáveis vezes, não se vá. A partir da terceira vez seu pedido não tem voz, pode-se apenas ler em seus lábios: n-ã-o s-e v-á. Repete isso sem perceber ele mesmo não está mais ali. A terra poderia sugá-los, o céu derreter o que impede seu azul de se fazer pintura para os olhos do casal. O tempo congela um beijo que não poderia ter sido diferente. O relógio acelera a separação. Não se vá.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Manhã clichê, conto repetido.

Despertei lentamente e estiquei minha mão direita procurando por você. Faz tempo que faço isso todas as manhãs, não desisto. Estico até sentir o ombro deslocar. Ombro no lugar. Hoje, especificamente, senti seu perfume e uma imagem invandiu meus pensamentos. Tive certeza que você estaria na portaria do prédio, pedindo perdão pelos meus erros. Ajoelhado diante dos meus pecados, chorando pelas minhas mentiras. Lembrei do tempo que fui kardecista, nos tempos de hoje acreditamos e desacreditamos em Deus com enorme facilidade. Lembrei e acreditei que meus pensamentos eram uma previsão do futuro próximo pós café da manhã. Sim, você estaria lá.
Levantei bem devagar, você sabe esperar. Esperou tantos anos ao meu lado por algo que nunca te dei. Tomei banho e ainda de toalha busquei um trecho do Milan Kundera que fala sobre fala sobre o olhar de quem não está por perto, que faz nos arrumarmos para quem queriamos que nos visse, mas não o faz. Passei o olho pelo trecho e pensei: que bobagem, ele está lá. Me vestindo para uma certeza, coloquei a roupa que você me deu e que não percebi ser tão bonita, até o dia em que me dei conta de que só meus vestidos ocupavam nosso armário, vazio de suas camisas. Bem, café pronto, cafeteira programada, mordida na torrada, farelo no decote. Pensei em interfonar e conferir se você estava mesmo por lá. Não preciso conferir, congelo sua imagem de joelhos. Me vejo por um segundo no seu lugar, peço perdão.

Pausa para lembrar da juventude. Depois da minha primeira decepção amorosa, esperava todos os dias o carro do ditocujo estar estacionado na minha portaria. Nunca estava. Uma sensação me remete a esse momento, sinto apenas a sensação mas não identifico o momento, não lembro do passado. É o medo sugerido por algo que já vivi, só o medo, o cara, o carro, o meu primeiro apartamento, nada disso aparece. Só o medo.

Sentimento vencido pela certeza da sua presença. Abro a porta. Hoje é domingo, minha noite foi de cão. Finjo ser terça, finjo que estou indo para o trabalho. Descendo o elevador penso nos casais que aproveitam domingo, dia sagrado, dia de macarrão e passeio no calçadão. Penso que isso é uma bobagem e lembro que você pensava como esses casais . Meu marido de anúncio de margarina, que nunca amei e que hoje movimenta minhas mãos no encontro da sua ausência. Agora o seu lado da cama quase congela. Impressionante como não me espalho mais na cama. Presença de ninguém. Assim que o elevador pára já constato que você não está lá.
Talvez se eu ainda acreditasse em Deus você estivesse, certeza que é certeza tem fé. Eu não tenho mais fé. Ou talvez isso seja uma prova de que Deus não existe mesmo. Você já foi e pronto.