domingo, 31 de março de 2013

Do lado escuro da vida

Do outro lado do mundo as coisas pegam fogo, explodem e se destroem em ódio e dor. Do meu lado as flores temem não nascer nunca mais e o fato da terra estar seca me paralisa. Descobrir que a água com a qual reguei as plantas fica guardada nas veias da folhas não me acalma a alma. Não posso ver o liquido correr como sangue e acredito que minhas plantas estejam sempre morrendo. Lidar com ódio parece mais fácil do que com amor. Lidar com o tempo. Lidar com aquilo que faz reboliço no peito. Dar razão para o que se sente pode salvar um coração, nunca dois. Adeus enjoada. A gente resolve um amor aqui, assiste outro nascer ali, perde o fio que conduz nossa própria vida. Se eu pudesse virar o mundo faria pegar fogo por aqui. Troco o amor que desconheço pelo ódio indomável. 
Saber se entregar para qualquer um é mais fácil do que se entregar para apenas um. Ser livre também não é fácil. Caminhar pelos caminhos tortos da certeza de antes, acertar os ponteiros da minha própria vida. O tempo vai passando. As coisas mudam. E mudam mesmo. O amor finalmente acaba e você sente a dor do desencanto. O amor finalmente volta e você sente a dor do desencanto. O amor que nunca teve chance de nascer deixa um gosto amargo de ser realmente amor. Nunca aconteceu e foi amor. Ser livre é mais difícil do que ser só. 
Será preciso então virar o mundo de cabeça para baixo. Será preciso aceitar o que não lhe pertence. Será preciso caminhar com sapato apertado. Os dedos vão sangrar, vão doer e talvez os passos sejam mais lentos. Será preciso aceitar os dedos machucados. Será preciso esperar que o novo sapato não substitua,apenas encaixe como se o outro nunca tivesse existido. Vai ser difícil deixar passar, mas não há outra saída. Adeus enjoada. O tempo é uma desculpa boa. Depois que o coração se acalma dizemos que foi o tempo e até esquecemos o que passou. Vai ser difícil. Já está difícil. O amor não pede licença para entrar, pra sair ou pra voltar. Já foi. Já está difícil.

segunda-feira, 25 de março de 2013

Vento

Será que toda vez que ele se posiciona na frente da janela e pensa na vida, consegue fazer os pensamentos irem embora com o vento? Mesmo sem essa certeza é ir para janela o que faz sempre que tudo pesa demais para ser pensado na cama. A profissão que escolheu, o amor da sua vida ter aparecido justamente na sua vida, o cigarro que não larga e não quer largar, a barriguinha fora dos padrões, as certezas depositadas no futuro incerto. Ele sente o peito apertar e a dor sair no cantarolar de uma música com letra forte. Os pensamentos na janela atravessam as verdades pessoais e embarcam em suas escolhas políticas, suas decisões de todo dia, sua ética estudada e revista, e aquela coisa que ele não sabe como surgiu, quem escolheu ou quem moldou. Eles apenas é assim. Ele sofre com as dores e doenças que se espalham pelo mundo, ele sofre com do movimentos perversos do capital, ele sofre com a obrigação de se calar toda vez que se sente impotente ou em dúvida. Sempre que vai pra janela sabe que a situação tá preta. Nele e no mundo. O que pra ele é uma coisa só. Não sabe mais o que fazer, sai da janela e vai para o quarto. Dorme e acorda por obrigação. Viveria na janela se não sentisse um impulso transformador em vários momentos. Venta na janela, venta no trabalho, venta na viagem que não fez, venta nas certezas do amor, venta, venta, venta. venta. Ele não consegue decidir se o vento entorta ou conserta. Se o vento leva ou se o vento traz. Bom seria saber. Bom seria se o vento transformasse. Se o vento soubesse, se janela fechasse, se ele pudesse viver outra vez, outra vez, outra vez.

domingo, 24 de março de 2013

Casa de campo

Talvez o bolo fique seco, mas cheira muito bem. Se for para um, será de laranja. Se for para outro, de brigadeiro. Se for mais além será de coco. Se for para ela será de avelã. Se for para quem nunca será, castanha do pará. As vigas e escadas são de madeira. O cheiro da madeira se confunde com o cheiro do bolo. O gato faz charme. Se for de um, será só um gato. Se for de outro, dois gatos. Se for mais para trás, uns seis gatos. Se for ela, não será gato. Se for quem nunca será, um gato e um cachorro. O sofá pode ser no chão. Pode ser importado. Pode ser vazio. Pode ser quente. Pode ser furado. Pode ser cheio de criança. Pode ser cheio de livros. Pode ser apenas uma poltrona. Só cabendo um. Se for ele, se for ela, se for eu, se formos nós. Os quadros são antigos. Se for de um, de outro ou mais além, será bem colorido. Se for dela, será importado. Pode ser dança, silêncio ou pode não ter mais quadro nenhum. Talvez o bolo queime. Se for um, vai raspar o queimado e comer. Se for outro, vai comer com queimado. Se for quem nunca será, não vai comer. O chão é gelado e as paredes são de pedra. Se for um vai cavar. Se for outro vai deitar. Se for antigo vai partir e voltar, partir e voltar. E para não dizer daquele não nunca seria, se fosse esse colocaria um tapete para encher nossa casa de poeira e esconder as mazelas de uma insistência infundada. Talvez o som não funcione. Talvez toque as melhores músicas do encontro de quem gosta das mesmas coisas. Talvez nunca seja ela, essa já era. Pior do que nunca seria, nunca foi. Talvez tenha mais som do que letras. Ou melhor ainda, tem a serenidade e paz de quem sabe cantar de olhos fechados e ainda assim estar olhando para mim e não para si mesmo. Quase me esqueci desse trovador. Se for o trovador a paz vai reinar por alguns segundos, sua alma é mais magoada do que tenta aparentar. E se não for ninguém, o silêncio vai reinar. O sofá vai esquentar. O quarto habitar muitas histórias de amor. E o passado se tranquilizar como uma história justa de uma menina entregue as possibilidades das mentiras/verdades do amor.

terça-feira, 19 de março de 2013

Espelho duplo

Foi um soco sem medida. Minha imagem se despedaçou. Tentei colar minhas partes com as suas que cortei de um retrato. Não funcionou. Manchou do sangue que escorria dos meus dedos e das lágrimas que escorriam da minha saudade. Dedo quase amputado que apontava uma direção. A lentidão do tempo, a pressa dos anos, tudo isso nos fez tão bem. Longe e perto. O tempo nos esmagou.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Das cinzas coração

Apodrecendo. Primeiro foram meus dedos e não pude mais escrever. Depois meus cabelos se dissolviam como pó. Se não fosse tão triste morrer em vida eu diria que frente ao espelho o cabelo virando pó é um bonito espetáculo. Meus pulmões já eram podres antes mesmo do meu pós morte. Entendam que eu não estava morrendo, morri e comecei a putrefação. Tudo teoricamente em vida. Meus lábios escureceram em velocidade desconhecida pela biologia humana. Me calei para não sentir vergonha todas as vezes que um pedaço podre de mucosa, ou um dente estragado caíssem na frente de algum conhecido da rua. Podia sentir meu coração parado, lutando para dar uma ou duas batidas por dia. Outro fenômeno que acompanhou minha morte viva foi o odor repulsivo. Odor característico daqueles que acompanham o fim dos encontros sinceros. Não existe nenhum fato que comprove o início da morte ou que aponte para as causas exatas do meu desmoronamento. Acreditei que se tratava de um castigo dado em função de minhas ausências. Talvez a poeira acumulada do meu apartamento ou os tiros disparados contra minha família tenham colaborado. Meus passos ficaram lentos por não ter mais carne nos pés, o odor reforçou os encontros falsos, o coração escureceu como um pulmão fumante e ainda assim não havia nenhuma cova para mim. Me mudei para um cemitério e fiz amigos. A ciência desconhece as doenças do amor e pude saber disso diante dos mortos com vida que encontrei tentando caminhar pelos corredores do cemitério. Calados por não termos lábios, nos entendiamos no olhar. Curiosamente nossos olhos permaneceram intactos, nem um pequeno verme ousou consumir o brilho triste que resta para os desiludidos. Ali não houve nenhum suicídio presumido e nem um assassinato. Concluo que tenha sido coisa da vida mesmo, coisa de quem se dedica demais ao impossível do amor. Desiludidos de amores que batem na aorta. Para esses a vida reservou um apodrecer tão lento que chega a se confundir com a eternidade.

domingo, 10 de março de 2013

Tautologia feminina

Não gosto muito dessa coisa de tipo. "Não faz meu tipo" ou "não tenho tipo" , são frases impossíveis e na medida em que se necessariamente se anulam deixam todos nós mergulhados num vazio incrível.  Façamos o seguinte: aceitar o vazio e abraçar um tipo de mulher. Falo daquele tipo que enrosca as almas, não compete com outras e treme diante de um imbecil qualquer. Forte demais para ser homem se torna imediatamente mulher. Cava grandes buracos no jardim para fazer com que as flores que cultiva tenham raízes grandes o suficiente para se fixar e ao mesmo tempo se espalhar para além dos limites da cerca. Suas flores crescem firmes e livres, coloridas e venenosas, perfumam e matam. Tem aqueles que se atrevem a entrar no jardim e aqueles que são flores. Esse tipo de mulher prefere aqueles que são flores, mas não é capaz de impedir a entrada daqueles que simplesmente invadem, roubam, pisam na flores. Ou daqueles que plantam mais flores. Ou daqueles que querem um pouco de tudo e acabam por não fazer nada.
Esse tipo de mulher é ao mesmo tempo, muito mais que jardinagem. Transita pelos cantos da cidade, faz estrago no seu próprio coração e acha que conhaque cura. Volta e meia alguém volta, arrependido, com o rabo enroscado. Ela é do tipo que deixa saudades. Que mente. Que simula. Que atua. Que representa a boa moça. No entanto, nem mesmo que a vida fosse um longa ópera o fim poderia ser evitado: a cortina fecha e  a máscara dela cai . A boa moça derrete. Sobra apenas figurino.
Se você não tem tipo, ou se ela não faz seu tipo, lembre-se: essas frases se anulam e fazem esse tipo de mulher surgir e desaparecer. Surgir e desaparecer. Surgir e desaparecer. Num movimento inquietante para ela e para os outros.

sábado, 9 de março de 2013

Carnaval

Quando se precisa de um tempo que não se pode ter fica pesado carregar meus instrumentos. Tento converter tudo aquilo em boa música, tendo escrever novas letras com idéias do passado, tendo construir uma nova ponte entre as coisas, e mais que tudo tento mudar tudo aquilo que me machuca fundo demais. Caminho errante e me surpreendo com as surpresas mais inesperadas. Erro nos planos e sinto que acertei no inesperado. Vai que chega logo o carnaval e tudo fica um pouco um melhor. Poderia pular o natal facilmente, como se fosse uma data inexistente no calendário falso católico. Falso para mim e para todos outros tantos que circundam meu corpo. Acredito assim que a tinta que cobre meu rosto, as curvas que não combinam com meu espelho e a insegurança que lateja apontem para uma certeza: o que começa falso, nunca pode terminar bem. É preciso se sentir livre para ser feliz, livre das próprias dúvidas e inseguranças. Sendo assim nem preciso de instrumentos, muito menos de boa música. Se não puder caminha sem as amarras da insegurança não servirá para mim. Caminho devagar, desvio dos desvios.