quinta-feira, 19 de maio de 2011

Conto perdido

A máquina faz um barulho estranho, mais alto do que o normal. Está quebrada. Ainda faltam algumas laranjas para que eu termine o suco. Minha mulher faz um barulho estranho, mais irritante do que o normal. Talvez seja sua respiração ou seu andar. Está quebrada. Mais alguns passos são necessários até que ela chega ao banheiro. Ela arrasta o chinelo. Eu tomo o suco.

A rua parece mais acelerada do que meus passos. Tudo parece desmoronar ao meu redor. Sinto que na verdade sou eu quem desmorona. Meu cabelo tem caído aos tufos, estou cada vez mais careca. A ciência tenta devolver meu cabelo, mas não impede meu desmoronamento. Acelero o passo, lembro dos passos de Renata até o banheiro. Ela se arrasta.

Chego na biblioteca. Aspiro o mofo. Caminho até a prateleira de filosofia antiga e toco alguns livros. Aspiro o mofo que fica nos meus dedos. Trabalho como restaurador e sinto-me feliz assim. O silêncio da biblioteca não acontece por obederecem as placas - SILÊNCIO . Acontece porque não há pessoas por aqui. Que alívio. Prefiro mofo à gente.

Meu horário chega ao fim. Posso ouvir os passos de Renata. Agora no salto. Arranha o chão e irrita o 302. Me irrita. Sou apaixonado pelas Deusas. Exatamente por serem Deusas. Renata nunca será uma, nenhuma mulher é uma Deusa. Afinal "mulher é tudo igual, se bobear os convites vão pra gráfica". Ela tira a sandália. Que alívio! Ela me beija e diz que vai fazer o jantar. Queria pedir uma pizza, mas tudo bem.

Sinto falta de não ser amado. Gostava mais de minha mãe. Ela nunca me beijou e sempre pedia pizzas. Não gosto do amor, gosto dos livros.

Como o jantar. Como Renata. Tomo outro banho. Coloco o óculos e pego meu livro. Corto o dedo no papel. Não ligo. Pego no sono com óculos e sangue nas mãos.

Acordo. A máquina faz mais barulho do que ontem.

Um comentário:

  1. "Ela nunca me beijou e sempre pedia pizzas. Não gosto do amor, gosto dos livros."

    excelente.

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