quinta-feira, 14 de março de 2013

Das cinzas coração

Apodrecendo. Primeiro foram meus dedos e não pude mais escrever. Depois meus cabelos se dissolviam como pó. Se não fosse tão triste morrer em vida eu diria que frente ao espelho o cabelo virando pó é um bonito espetáculo. Meus pulmões já eram podres antes mesmo do meu pós morte. Entendam que eu não estava morrendo, morri e comecei a putrefação. Tudo teoricamente em vida. Meus lábios escureceram em velocidade desconhecida pela biologia humana. Me calei para não sentir vergonha todas as vezes que um pedaço podre de mucosa, ou um dente estragado caíssem na frente de algum conhecido da rua. Podia sentir meu coração parado, lutando para dar uma ou duas batidas por dia. Outro fenômeno que acompanhou minha morte viva foi o odor repulsivo. Odor característico daqueles que acompanham o fim dos encontros sinceros. Não existe nenhum fato que comprove o início da morte ou que aponte para as causas exatas do meu desmoronamento. Acreditei que se tratava de um castigo dado em função de minhas ausências. Talvez a poeira acumulada do meu apartamento ou os tiros disparados contra minha família tenham colaborado. Meus passos ficaram lentos por não ter mais carne nos pés, o odor reforçou os encontros falsos, o coração escureceu como um pulmão fumante e ainda assim não havia nenhuma cova para mim. Me mudei para um cemitério e fiz amigos. A ciência desconhece as doenças do amor e pude saber disso diante dos mortos com vida que encontrei tentando caminhar pelos corredores do cemitério. Calados por não termos lábios, nos entendiamos no olhar. Curiosamente nossos olhos permaneceram intactos, nem um pequeno verme ousou consumir o brilho triste que resta para os desiludidos. Ali não houve nenhum suicídio presumido e nem um assassinato. Concluo que tenha sido coisa da vida mesmo, coisa de quem se dedica demais ao impossível do amor. Desiludidos de amores que batem na aorta. Para esses a vida reservou um apodrecer tão lento que chega a se confundir com a eternidade.

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